Imagem-tema da 37a Reunião Nacional da
ANPEd, feito especialmente pela professora e bordadeira Olinda
Evangelista.
Bordar é um encanto
Olinda
Evangelista
Há
mais de dez anos bordo sobre retalhos, mas nunca escrevi sobre isso. Não
imagino como explicar meu bordado ou como falar sobre ele, pois o vejo como
simples expressão de vida e exercício de fruição sincera.
Bordar
é momento de libertar a imaginação, a cor, a textura que posso encontrar em
panos, linhas e pontos. Entro em contato com minha história, muito
particularmente com memórias infantis. Minha origem interiorana e rural dá o
sentido inintencional aos meus bordados.
São
recorrentes árvores, florezinhas, capim, passarinhos, casinhas, montanhas, sol,
nuvens, chuva, rios, pintinhos, galos. Há um aroma do campo, romantizado,
bucólico, nessa mistura que me remete a uma infância vivida no sítio ou perto
dele. Aparecem os casamentos na roça, os interiores das casas com fogões à
lenha, bancos, vasinhos, gatos, galinhas e abóboras. Aparecem também as cenas
maternas, as frases ditas por minha mãe mineira. De certo modo, os bordados que
assomam à minha cabeça registram episódios da vida dela que ouvi ou vivi quando
criança e jovem: crochetando, lavando roupas, cozinhando, indo à cidade.
Exposição "Tempo da delicadeza" . Bordados na 37 ANPEd . 04 a 08 de outubro de 2015 . Centro de Eventos UFSC
Meus
bordados são também um lugar de gratidão à escola, ao livro, aos professores,
ao conhecimento. Minha trajetória escolar começou aos sete anos e aos 15, em
1970, ingressei na Escola Normal, em Londrina (PR). Entre 1970 e 2015 – 45
anos, durante os quais cheguei ao pós-doc – a escola entrou em minha vida de
outro modo: primeiro como professora, depois como pesquisadora. Em muitos de meus
bordados, o livro, o conhecimento, a escola, a professora estão presentes.
Neles aparecem referências à luz que o saber irradia sobre o mundo, que nos
permite vê-lo e talvez entendê-lo em suas múltiplas e complexas determinações:
velas, lamparinas, sol, estrelas.
Há
25 anos moro na praia do Campeche, cidade de Florianópolis (SC), mas só
recentemente o mar e sua exuberância apareceram em meus panos e linhas. Às
vezes livros e leitores aparecem no mar. Quando mudei para Florianópolis, em
1991, conheci o fantástico bordado sobre retalhos de Dona Maria Celeste que
tematiza as tradições africanas na ilha – até hoje me fascina e é grande
inspiração.
Como
muitas mulheres de minha geração, aprendi com minha mãe a bordar e a costurar
roupinhas de boneca. Na escola também aprendi a bordar, nas aulas de Trabalhos
Manuais. Igual a tantas mulheres, o trabalho me afastou do bordado e da
costura. Mas não pertence apenas à mulher a arte do bordado. Homens bordam
muito: Bispo do Rosário, Leonilson e João Cândido são exemplos. Paulo Luiz de
Oliveira é um bordador com quem tenho compartilhado belíssimos encontros entre
linhas e agulhas.
Depois
de muitos, muitos, anos afastada dos paninhos, caí na provocação do bordado, em
2004, em Portugal, terra de indescritíveis criações. Lá encontrei revistas
espanholas de riscos e pontos, tradicionais no Brasil, e vi muitas exposições
de lenços dos namorados. Os lenços, graciosos, coloridos e com trovas de amor,
me provocaram. Cedi à tentação, comprei linhas e linhos, recuperei os pontos básicos
da infância – ponto atrás, caseado, cheio, correntinha – e saí bordando. Ao
voltar de Portugal comecei a lidar com panos e linhas num grupo de mulheres, Respigar,
a convite de Sonia Beltrame.
Mais
tarde, conheci as arpilleras chilenas, marcadas profundamente pela
violência da ditadura de Pinochet, os bordados peruanos, ambos com retalhos, e
os bordados equatorianos. Num dos encontros do Respigar, conheci os
bordados com retalhos de uma senhorinha, anônima para mim, de Porto Alegre. Meu
fascínio foi completo. Nesse ano, 2005, fui paraninfa de uma turma de
licenciandas em Pedagogia e bordei meu primeiro pano para elas, transformado em
cartão.
Acredito
piamente que a beleza deve ser compartilhada; a sua fruição nos humaniza, nos
torna maiores. O bordado, essa criação humana, precisa ser visto e admirado,
por isso procuro formas de mostrá-lo. Colaborei na organização de exposições
coletivas, em Florianópolis, Curitiba (PR) e São Paulo (SP), organizei livros
de bordados com outros amantes do bordado, procuro conhecer os que se dedicam a
ele, ensino, participo da Roda de Bordado no Campeche e, em 2014, fiz
uma exposição de meus bordados em Florianópolis.
Nessa trajetória de dez anos uma mudança
considero mais importante, além da variação temática. Quando comecei a bordar
usava paninhos estampados, com desenhos miúdos. De certa forma, sinalizavam o
sentido que queria imprimir às imagens. Um palpite sobre tecidos de Nini
Beltrame levaram-me a repensar os retalhinhos. Hoje gosto mais de estampar os
tecidos com meus bordados, enfeitá-los com pés de florzinhas, gatinhos,
passarinhos… Parece que assim ficam mais graciosos e também engraçados.
Engraçados de fato são os encontros entre mim e minha companheira de linhas e
paninhos, Olga Durand, cuja firmeza no leme das viagens bordadas é admirável.
A poesia
Muitos
de meus bordados nasceram da leitura de poemas. As frases poéticas suscitam
imagens que são traduzidas em panos, linhas, cores e pontos, poucos. O poeta
que mais bordei foi Manoel de Barros (1916-2014). Seu apreço pelo nada me
deslumbrou. O bordado abaixo é da Maria Célia Marcondes de Moraes.
Os sofás
Os
sofás antiguinhos compõem uma boa parte de meus paninhos. Lembram os de
plástico, coloridos, da casa de minha mãe. E trazem um pouco do idílio
infantil, infelizmente perdido. Chamei essa série de Sofás Encantados. No
primeiro bordado o hai kai é de Bashô (1644-1694). Os crochês são de Dona
Lazinha, minha mãe, hoje com 93 anos. Este sofazinho bordei para Anabea
Cerisara.
A minha mãe
Minha mãe também é grande fonte de inspiração.
Suas falas de mineira caipira soam musicais. Gosto de bordar cenas de sua vida,
que vivi ou que a ouvi contar. D. Lazinha é um espetáculo à parte. Este bordado
está na parede de sua sala.
A escola
Escola, livro, conhecimento são meus
companheiros de vida. Desde que entrei na escola, aos sete anos, até hoje, aos
61, não pude me afastar das questões que a envolve. Livros são recorrentes nos
meus bordados e sempre vêm acompanhados de alguma luz, a luz que o saber
irradia e nos permite ter. Iluminar o mundo, papel do livro, da escola, do
conhecimento, do professor. Kátia Caiado encomendou esse bordado para capa de
seu livro.
A água
O azul é recorrente em meus bordados, céu ou
água. Inicialmente, a cor apareceu como o rio do interior, rural, do Paraná,
estado onde nasci. Poucas vezes apareceu como céu chuvoso. Muito recentemente,
tornou-se mar, o mar do Campeche, o mar de Florianópolis. Mas continua rio e
céu. A imagem abaixo é da casa da Terezinha Cardoso e a frase da Olga Durand.
O amor
O amor romântico, para-sempre-feliz, também é
recorrente nos retalhos que bordo. Algo das princesas que ficou… Esse bordado
fiz para os 40 anos de casamento de meus amigos Dolinha e Walter Schmidt.
A música
Fonte
de criação inimaginável, a música abre um vasto campo de viagens. Por
mais que eu borde, nunca apanho a maravilha imensa de seus versos. Aqui está
Dolores Duran na noite de seu bem. Ela agora enfeita as noites de Aníbal Brito.
A arte
O
desejo de bordar encontra fios em toda parte. Na arte, o gramado é vasto. Este
bordado é uma espécie de releitura do cartaz de Djanira para a peça Orfeu
da Conceição, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, encenada no RJ em 1956. No
fundo está a letra de Se todos fossem iguais a você, tema da peça.
Fez parte da Exposição Bordando os Sete, em São Paulo. O quadro de Djanira
encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (RJ). O bordado
está em minha casa.
Florianópolis,
agosto de 2015
Página: http://gepeto.ced.ufsc.br/
E-mail:
olindaevangelista35@hotmail.com
Texto completo na página da 37a. ANPED:
http://37reuniao.anped.org.br/bordados-olinda-evangelista/
Texto completo na página da 37a. ANPED:
http://37reuniao.anped.org.br/bordados-olinda-evangelista/